Maria Célia e eu tínhamos um jogo de 6 xícaras com seus respectivos pires. Semanas atrás, Maria Célia deixou cair uma xícara, mas salvou seu pires. Caiu-me outra xícara das mãos na semana seguinte, enquanto recordava uns versos de Augusto dos Anjos. A colher também escapou-me.
Despertei com o ruído na sala, Maria Célia recolhendo xícaras, copos, cinzeiros, o que restara mais que a memória de uns amigos da noite anterior. O jogo ia se tornando confuso com seus pires lascados, xícaras sem asa, e nenhum de nós se lembrava mais de quantas xícaras e pires havia de fato. Às vezes mais do que podíamos ver na bandeja. Às vezes menos.
Na manhã de sexta, encontrei um de seus bilhetes, itens caracterizados pelo grafismo travesso dela:
– tirar manteiga da geladeira
– comprar ovos
– leite
– não esquecer de contar as xícaras
Isso me incomodou, o último item. Pois na quinta ela havia contado 4 xícaras e 5 pires. E na terça, dois dias antes, pude reconhecer 2 xícaras e 3 pires. Sendo inadmissível que algum desses objetos tenha se reorganizado e retornado à bandeja voluntariamente, começamos a desconfiar que o tempo na verdade existia.
Observávamos o verdadeiro número de xícaras e pires restantes, o que não correspondia às nossas convicções e ainda nos espantava continuamente. Cada xícara que nos escapava vinha confirmar a Segunda Lei da Termodinâmica, variante daquela Lei de Murphy, que pressupõe o universo, tanto quanto o podemos considerar, um sistema fechado, no caminho irreversível da desordem. Assim, qualquer xícara da Rússia czarista ou seu similar entre os maias já tinha, desde sempre, seu destino comum: o espedaçar-se, o fragmentar-se de seu todo. Se por acaso uma delas ainda se conserva em alguma parte, não importa: jaz no silêncio de espera por sua trajetória fatal de cacos do futuro, pois não há, na seta do tempo, chances de eternidade para os corpos organizados.
A situação de tal forma tornara-se desconcertante que tivemos dificuldade em servir café a um amigo que nos veio visitar justamente num dia em que só encontramos uma xícara na bandeja, apesar dos cinco pires. Meu amigo, analista de sistemas e físico amador, compreende exatamente o que significa um pires, uma xícara, por isso ignora o deslumbramento. Também, por estar distraído com fórmulas e equações, não conhece o arrepio de se tentar deslindar, apenas com a intuição, o universo.
Maria Célia e eu temos xícaras e pires que não mais nos desafiam pela complexidade de suas variações. Nosso cotidiano nunca mais foi o mesmo desde que descobrimos o caráter inextricável das dimensões que interagem com a realidade humana, bem como as inúmeras possibilidades de nossos corpos quando juntos.
Hoje, perdemos a tesoura.
Perce Pollegato, 2001 (texto encontrado no livro Lisette Maris em seu Endereço de Inverno, do mesmo autor)
http://www.allprinteditora.com.br/produtos_det.php?cod_produto=397
Irene, como vai?
ResponderExcluirNão só não há problema nenhum como me sinto honrado com isso.
Só por curiosidade, como conheceu o texto?
Se quiser me deixar seu endereço, terei prazer em lhe enviar um exemplsr de cortesia de um de meus livros.
(Aliás, seu blog está lindo.)
Abraços, fique à vontade para me escrever.
Perce