Sim, ele era distraído. Mas muito mesmo. Desses que vão a velório e cumprimentam a viúva.
E tímido. Tanto é que já estava passando dos trinta e não tinha encontrado ainda a sua cara-metade. Ou alma gêmea, como é moda nesses dias de vidas passadas a limpo.
E meio intelectual. Passava tardes na biblioteca pública.
E educado, muito educado o Luís Antônio.
E foi na biblioteca, numa tarde de muita chuva que ele conheceu a Vera Heloisa, também interessada nos clássicos russos. Entre uma guerra e uma paz e a visita de um inspetor geral, ele já estava dando carona para a moça.
Ficou sabendo, por exemplo, que a família dela, havia muito tempo, se dedicava aos negócios do café. Importação. E degustação. Todos na casa dela entendiam do assunto.
Papo vai, livro vem, namoro começando, um dia ele foi buscar a Vera Heloisa na casa dela. Ela ainda não estava pronta, pediu para ele entrar e conhecer a família.
Titubeou. Primeiro, pela timidez. Segundo, porque, além de não entender nada de café, odiava a tal rubiácea. Talvez em toda a sua vida tenha tomado apenas um e se enojado. Era isso mesmo. Tinha nojo de tomar café e de até conversar com quem tomava café.
Mas a Verinha insistiu, um beijinho aqui um beliscãozinho ali e ele entrou.
Ninguém, na sala. Ela pediu que ele se sentava que em quinze minutos estaria de banho tomado. Ficou sozinho na elegante sala, num sofá delicioso ao lado de um vaso exuberante.
Entra A Mãe, assim em maiúsculas, porque ele logo se lembrou do Tolstoi. Levantou-se, quase se curvou.
- Luís Antônio?
- Muito prazer, dona Noquita.
- Sente-se. Fique à vontade.
- Com licença.
- A Vera Heloisa tem falado muito em você.
- É...
- Ela está sempre atrasada, essa menina.
- É...
- Toma alguma coisa?
- Não, não precisa se preocupar. Se incomodar.
- Incômodo nenhuma. Um cafezinho?
- Cafezinho?..
- O Breno trouxe ontem um A2 tipo exportação, que eu não posso deixar de lhe oferecer.
- Imagina...
- Acabei de passar. Com licença.
- Tem-na toda.
Ela saiu, ele achou que exagerou no "tem-na toda", mas precisava impressionar a solícita dona Noquita. E a agonia pela chegada do café apenas começara naquele começo de noite.
Dona Noquita volta. Caprichou. Pires com toalhinha bordada, talvez pela avó da Verinha, pensou Luis Antönio, pegando o fumegante café.
- Fique à vontade, Luís Antônio. Vou apressar a Vera Heloísa. Depois me diga o que achou deste cafezinho, hein?
- Claro, claro.
Bem que ele tentou. Achou aguado e, para dizer a verdade, quente demais. Olhou em volta. Ninguém a vista. O vasão estava ali ao lado, pronto para receber o café entornado. Jogou tudo lá, colocou a xícara em cima da mesinha, limpou os lábios com o lencinho.
Ela volta.
- Já está descendo.
- Uma delícia, dona Noquita.
- Mais unzinho?
- Não, não, muito obrigado.
Dona Noquita se abaixa para pegar a xícara.
- Ué, onde está a xícara?
- Aí, ué.
- Aqui só está a xícara. Mas o copinho, onde está?
Foi aí que ele percebeu que era daquelas xícaras de prata, onde se coloca o copinho de plástico. Olhou para a terra do vaso. Ele estava lá, virado. Imundo. Dona Noquita também viu.
Pegou com asco aquela imundície e colocou em cima da toalhinha de pano, que ficou toda suja de terra e um pedaço de folha e, educada, sem dizer nada, cara fechada, saiu para a cozinha.
Quase ao mesmo tempo em que o Luís Antônio saía pela porta da frente para nunca mais voltar e muito menos freqüentar a biblioteca municipal.
Mário Prata (crônica publicada no Estado de S. Paulo em 23/6/1997)
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