[...] Quando desfiz setenta e cinco anos mudei de casa mais uma vez. Minha mãe, se fosse viva, não teria aprovado. A experiência de mudar lhe causava medo. “Casa de morada”, nos tempos idos, era um lugar estável, seguro, para onde se podia sempre voltar. Ela estaria lá, onde sempre esteve. Em alemão existe a palavra “umheimllich” que significa, literalmente, fora do lar, “heim”= lar, perdido numa terra estranha. Mas ela tem um sentido existencial de coisa sinistra... Quando a minha mãe falava “lá em casa” ela não estava se referindo à casa onde nós morávamos. Estava se referindo ao sobrado colonial centenário, vidros coloridos, tábuas largas no chão, sólido e eterno como a casa de Jaspers. Quando ela se casou ela saiu da “casa” e foi morar no “umheimlich”. Acho que durante a vida toda ela sonhou com a volta... Se pudesse ela desfaria a mudança para deitar raízes na casa antiga... Todo desenraizamento é “umheimlich”.
Ela sempre repetia como certeza além de qualquer dúvida: “Velho não pode mudar de casa senão morre...” E essa lei anti-mudança valia para tudo, de canecas a casas. Uma vez, passando uns tempos na minha casa, recusou-se a tomar o café com leite matutino em canecas, como era nosso hábito. Como explicação ela disse simplesmente: “Não estou acostumada...” Mas, que diferença faz tomar o café com leite numa caneca ou numa xícara? Pra ela fazia. A xícara e o pires continham um lar. Providenciamos então a xícara e o pires: aí ela tomou com prazer o mesmo café que todos nós tomávamos na caneca. Estava em casa...
Texto extraído de crônica de Rubem Alves (Boa Esperança, MG, 1933) publicada no Correio Popular (Campinas, SP) em 20-9-2009
Se quiser ler a crônica inteira (vale a pena!), acessar http://zelmar.blogspot.com/2009/09/mudei-me-de-casa.html
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