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sexta-feira, 27 de agosto de 2010

As xícaras de porcelana

Eu ainda era muito criança, quando morava na Vila Militar do 14º RI, em Socorro, Pernambuco, município de Jaboatão. E me lembro com muito carinho de algumas amigas de minha mãe. Cada uma deixou em mim uma lembrança espacial.
Dona Dina era a que fazia os suspiros mais incríveis que já comi, e devia haver algum segredo especial, porque jamais consegui fazer igual. Dona Luci era a única que tinha revistas em casa. Eu ia pra casa de manhã e se mamãe não mandasse me chamar para almoçar eu fucria ali horas e horas, sentadinha em um canto da sala daquele casal sem filhos e que, talvez por isso, me tratasse com tanto carinho.
Ali foi um dos lugares onde mais li e, ainda criança escolhi o nome do filho que já sabia, teria um dia: Eduardo. Por quê? Porque pra mim nenhum outro nome poderia ter um significado mais forte do que o daquele homem que havia colocado o amor acima de tudo. Lia tudo sobre aquele rei.
Mas não lia só isso, lia as revistas de ponta a ponta. Algumas vezes dona Luci me deixava recortar as fotos de alguma atriz de cinema de maiô, que eu colava em cartolina e com elas fazia vestidos de papel, já que não tinha bonecas.
Outra amiga muito especial era dona Helena, a mulher mais linda que morava naquele lugar. Suas roupas eram diferentes das de todas as outras mulheres, e sempre de muito bom gosto. Havia muitos mistérios que a cercavam e quando li Miguilim, de Guimarães Rosa,era dona Helena que eu via.
A amiga de minha mãe que eu adorava, era dona Alaíde, mas nem sempre ela podia participar daquelas rodas, porque era mãe de sete filhos, e vivia sempre muito ocupada com eles.
Mas aqui quero falar de Maria. Maria que todos chamavam de Maria de Zacarias. Em alguns relances que consegui captar naquela época, eles viviam juntos sem serem casados, e moravam às margens da Vila militar. Ela começou a freqüentar nossa casa como manicure e logo se tornou amiga de minha mãe.
Nossa casa era o centro de reuniões das mulheres dos outros sargentos. À tarde elas ali faziam lanche onde se comia cuscus de milho com leite de coco, manuê, tapioca, bolo de massa de mandioca, hoje chamado de Souza Leão, e os famosos suspiros de dona Dina.
Sempre que minha mãe se distraía, eu ficava por ali, tentando escutar a conversa das mulheres. Acho que ali já começava a brotar “a escritora”.Elas bordavam lindas toalhas em ponto-de-cruz, crivo, rechilieu; outras faziam os acabamentos dos vestidos que minha mãe costurava. E eu, por ali, sempre escutava trechos de algum segredo, retalhos de algumas mágoas, pedaços de alguns sonhos.
Quando minha mãe me via na sala, me mandava ir imediatamente brincar no quintal para não ouvir a conversa dos adultos que, segundo ela, não era coisa de criança. E pelo que fiquei sabendo alguns anos depois, realmente não eram conversas que crianças devessem ouvir.
Mas alguma coisa ficou do que ouvi. De Maria, especialmente, jamais me esqueci. Não foi em nossa casa. Foi na casa dela, aonde fui com outras duas meninas. Maria tratava as crianças com o mesmo carinho que dedicava aos adultos, recebeu-nos, mandou-nos entrar e depois de algum tempo de conversa, forrou a mesa com uma toalha bordada com lindos cravos vermelhos, tirou três xícaras de porcelana da cristaleira e nos serviu bolo com café.
Preocupada, porque jamais minha mãe nos servira café em xícaras de porcelana, reservadas sempre para as visitas, a que chamamos “de muita cerimônia”. Pessoas que raramente a visitavam.
Pensando nisso, expressei minha preocupação à Maria:
-Você vai nos deixar tomar café nestas xícaras de porcelana? Não precisa, Maria, nós não somos visitas. E, ali, naquela vila onde não havia nem asfalto, nem bancas de jornais, muito menos livrarias, ouvi daquela mulher semi-alfabetizada uma das maiores lições que alguém poderá ter-me dado, em toda minha vida: dessas lições que fazem parte da natureza, da sensibilidade das pessoas. Ensinamentos que não se aprende em nenhuma faculdade, mas aquelas que nos brotam da alma
-Xícaras de porcelana, Risomar, não são para as visitas, são para as pessoas que a gente ama. Nem sempre as visitas que a gente recebe são pessoas queridas. A elas posso servir café em canecas de alumínio, de barro, de louça, porque elas nem sempre são importantes pra mim, vocês não. Vocês eu vi nascer, vocês são pessoas que eu amo, por isso o melhor que eu tiver em minha casa é para vocês.
Aquelas palavras ficaram em mim para sempre. Xícara de porcelana pra mim é uma metáfora que passou a fazer parte da minha vida. E quando às vezes, aborrecida, sirvo alguma coisa em “xícaras de barro” às pessoas que amo, fico mal, pior do que a pessoa que bebeu o que servi. E imediatamente me vem à lembrança a lição das xícaras de porcelana que um dia recebi daquela mulher extraordinária.

Risomar Fasanaro, fevereiro de 2010

Um comentário:

  1. Olá, Irene
    Lírio é meu e-mail. Meu nome é Risomar. Pode publicar qualquer texto meu que quiser, não tem problema algum, pelo contrário, fico feliz que tenha gostado.
    Eu também colecionava xícaras, mas parei. Publico toda terça-feira um texto no http://pbondaczuk.blogspot.com. Publiquei também no "comuniquese" (www.comuniquese.com.br)e e tem o do lirio...
    Esteja à vontade para publicar meus textos, OK?
    Beijos
    Risomar

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