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quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Escova de dente e xícaras de chá

O rapaz entra no banheiro, a luz de óleo iluminando um rosto tomado por algumas veias e eventuais espinhas. Ele se olha no espelho e, é assim com todo mundo, vê muito mais que apenas isso, sobretudo quando encara a fundo os olhos expressivos. “Este é você”, ele diz pra si mesmo. Ele se despe, os pés tocando o piso gelado até o chuveiro, de água em temperatura igual. Enquanto se molha, o rapaz repete em sua cabeça as mesmas frases que martelam em sua cabeça, pensamentos soltos, mas isolados e invioláveis.
Ele refaz mentalmente o seu caminho inverso, por calçadas futuramente nostálgicas. Sua memória, absolutamente confusa, o leva a lugares prediletos, rostos recentes mas já tão familiares, um supermercado, o sorvete. Este é o caminho de seu corpo, claro, mas levado por apenas cinco por cento de sua mente. Ah, a mente está lá longe, mergulhada em uma xícara de chá que ele costumava usar quando morava com sua família; é isso. “Este é você. Você tem uma família. Você toma xícaras de chá.”
Xícaras. De chá. Tomava litros para poder dormir, mas sempre ganhava a insônia dos solitários, que o jogava nas ruas como se o expulsasse de si mesmo, sem o impedir de existir, mas também sem que ele pudesse obter respostas. É sexta-feira à noite, a última sexta feira de um espetáculo de circo de altos e baixos, com atrações de interesses incríveis, mas também de gostos duvidosos. Não, nunca tão gostosos quanto as xícaras. De chá.
Com o sorvete na sacola, sozinho pela longa avenida, o rapaz pensa. O corpo o leva para casa, coisa que ele já não sabe o que significa, mas o leva para lá, enquanto ele cantarola evitando melismas insuportáveis. Deve ser uma figura interessante para os outros que passam, mas ele não liga. Num geral estava melhor acompanhado quando sozinho, fato constantemente observado com contradição, porque tudo que ele mais quer no mundo é a companhia de alguém que o entenda. Mas ainda assim, é só ele, e apenas ele, cantando sozinho numa sexta feira à noite.
Ele chega em casa e o sorvete vai pra dois lugares gelados em tempos diferentes: primeiro, para a geladeira, depois para seu coração triste. “É um sorvete delicioso demais, vai dividir com alguém?”, ele diz “Pretendo”, mas ficaria – mesmo – apenas na pretensão. No fim das contas, os que tentavam violar seu cérebro acabavam também querendo isolá-lo. Era uma máxima que ele já desistira de questionar. O celular diz que vai tocar, mas não toca, mesmo. Ele toma o sorvete junto de seu edredom e de uma sombra vazia, mas antes disso ele guarda as últimas roupas na mala.
O rapaz entra no banheiro, a luz de óleo iluminando o rosto tomado por algumas veias e eventuais espinhas. Ele se olha no espelho e, é assim com todo mundo, vê muito mais que apenas isso, sobretudo quando encara a fundo os olhos expressivos. “Este é você”, ele diz, e a expressão de seu rosto é enigmática, no limiar de uma lágrima, na antecipação de um sorriso. “Cantando sozinho, sexta feira à noite, você e sua mente esquecida.”
Ele desliga o chuveiro, a toalha é azul, da cor da liberdade infinda e desconhecida. Seus pensamentos analisam a situação, torturam contra e a seu favor. Talvez ele esteja louco, talvez não. Ele costuma escovar os dentes após o banho, fazer um enxágue bucal, e, por vezes, passar o fio dental. Desta vez, porém, ele esqueceu. A cabeça está na música que ele cantarolava sozinho,na calçada que pisou, sozinho.
A companhia de suas xícaras de chá não costuma confortar, pois deixavam um gosto amargo na boca, fazendo-o escovar os dentes com determinada displicência. E depois ele olhava no espelho e dizia – sempre e apenas – para si mesmo:
“Este é você. E eu espero que fique tudo bem.”
Ele tem uma mudança e mil consequências, ou uma consequência para mil mudanças. Ele tem mil opiniões e nenhum tempo pra explicar, ele tem a solidão e mil pessoas para lhe fazer companhia, ele tem uma calçada predileta e mil delas sem pisar, ele tem uma escova de dente e mil xícaras de chá.


Pelvini, março de 2009

Um comentário:

  1. Oi, Irene,
    Fiquei muito agraciado com a honra de ter um texto meu no seu blog - e ainda mais com a gentileza de receber um email avisando e, melhor de tudo, com a atitude muito bacana de ter me creditado (:
    Tenho muito carinho por esse texto, em especial, porque escrevi num momento muito particular da minha vida.
    Espero que tenha gostado.
    Muito obrigado,
    Pelvini

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