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segunda-feira, 2 de julho de 2012

A estante de xícaras

     Na família todos tinham horror a quinquilharias. Jogava-se fora o inútil, o aparentemente desnecessário, o que ninguém reclamava para si de imediato. Estava ali um bom exemplo que gavetas servem realmente para roupas, utilidades domésticas, no máximo documentos.
     A única exceção que se fazia era para a coleção de xícaras de dona Marita. Ninguém nunca entendera. Até porque ninguém nunca tivera paciência, naquela família, para colecionar nada. As xícaras não tinham lá grande valor como antiguidade, não eram exóticas nem raras, sequer poderiam ser ditas de bom gosto, com algum estilo mais definido. Não. Eram apenas xícaras que, por vezes, apareciam como que do nada, sem maiores explicações e iam enchendo o armário que ela encomendara a um marceneiro, luzes embutidas, espelhos ao fundo, prateleiras com medidas padronizadas, chaves que apenas ela possuía. Os filhos, depois os netos, se acostumaram ao móvel como se ele fosse mesmo um pedaço da família, sem sequer querer entendê-lo. Ninguém sabia mais se interessava em saber como começara a mania da avó, ninguém perguntava. Coisa de velho.
     Até o dia em que dona Marita morreu. E aí, o que fazer daquela coleção que, descobriram, tinha quase 300 xícaras? É verdade que quando a velhinha começou a ficar mal, a conversa já andara de boca em boca, mas diante da morte, veio o inevitável: que fim dar àquela coleção? “Quem sabe a faxineira fica com algumas, a gente pode doar outras tantas pr’alguma casa de caridade”. “Mas, se os amigos souberem, vão falar”. “Na minha casa não quero. Prá que tanta velharia?” “A gente pode dizer que ela deixou em testamento pr’algum parente qualquer.” “Melhor guardar pelo menos algumas de lembrança, vocês parecem que nem têm respeito”.
     Só que para fazer qualquer coisa, tinham que abrir o tal armário. E cadê a chave? E não é que ninguém tinha se preocupado com ela? Procura daqui, procura dali, e nada. Até que percebendo o mau-humor que se espalhava pela família, o garoto da vizinha, com seus 8, 9 anos, resolveu se intrometer. “Ah, a chave. Eu sei, sim, onde Dona Marita guardava. Está junto com o livro que de histórias. Ela me contou todas, eram melhor que a dos livros lá de casa, só que quando pedia prá ela repetir alguma que gostava mais, tinha sempre alguma coisa diferente. Tinha história de guerra, de criança, de bicho, de rock, de tudo.”
     Acharam a tal chavinha realmente onde o menino dissera. E ao lado um livro de capa preta, bem antigo, com páginas e páginas escritas manualmente. Primeiro um número. Depois, uma página inteira. Ao final, a letra já estava mais tremida e não eram mais que algumas linhas.
Após o número 1, o que havia era uma descrição surpreendente: “Encontrei hoje um cartão de meu pai, de quando estava na frente de batalha, lutando por São Paulo em 1932. Eu ainda era pequenininha, e ele escreveu a lápis, dizendo que era o toquinho que tinha conseguido. Queria saber de mim, de minha irmã. Contava que estava bem e que o melhor de cada dia era quando, no começo da noite, às vezes eles conseguiam ter uma xícara de café quente. Achei tão bonito.Vou começar a colecionar histórias sobre xícaras. Cada história especial que encontrar, vou comprar uma xícara qualquer, como se fosse com ela que tudo tivesse acontecido. Espero manter essa promessa ao longo da vida”. A data era 1945.
     Foram virando as páginas, encontraram lá pelo número 120 o relato de que Betinho (alguns netos, os mais jovens, perguntaram quem era Betinho), durante seu período de trabalho como operário, nos anos 60, antes do exílio, fora um lixador de xícaras.
     A última página, com o número 289, era simples. “Lady Gaga parece amar suas xícaras, hoje ela apareceu com mais uma diferente. São tão alegres, coloridas, doidas como ela. Pena que as pessoas só olhem para a roupa dela. O que será que ela bebe nessas xícaras? Ninguém conta. Será chá? Café? Ou alguma mistura mais misteriosa?”
     A família permaneceu perplexa. Finalmente haviam descoberto o que Dona Marita realmente colecionara por tanto tempo.

Beatriz Vicentini, abril de 2012

No dia em que a Bia chegou em minha casa e me disse que tinha escrito uma crônica inspirada pela minha coleção de xícaras, eu fiquei muito feliz. Somos amigas há muitos anos e eu sempre fui fã de seus escritos ... ela é uma cronista de primeira. Senti-me honrada! E pedi uma cópia, pois queria colocar no blog.

Aí está a crônica, que me emocionou, pois tem muita coisa da minha coleção ... tem também pedaços inspirados em sua própria história, o que nos torna ainda mais ligadas. Obrigada, minha amiga!
Quis colocar aqui, junto com outro presente de outra amiga, que também me emocionou.

3 comentários:

  1. muito lindo, amei! parabéns irene e bia. bjs

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  2. Obrigado pelo espaço para meus rabiscos. Já foram muitos os cafés em sua xícaras - as especiais e as comuns - regados pelo carinho e confiança de nossa amizade, portanto nada mais do que natural escrever sobre elas. Bia.

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  3. Linda a crônica. Fiquei emocionada. Obrigada por compartilhar essas emoções.Bjs Marcia

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